Visitámos a Catedral de Lugo e só depois nos fizemos ao Caminho. Passamos por várias povoações onde não se via vivalma e felizmente decidimos almoçar ao meio-dia no único bar que viríamos a encontrar aberto, até San Roman. À tarde saímos da estrada, entramos pela floresta e começou a chover, mas já contávamos com isso. Íamos seguindo os marcos com a vieira amarela. Alguns tinham escrito a distância que faltava até ao fim, outros tinham também pedras em cima. Essas pedras simbolizam desejos, problemas deixados para trás, sonhos, ofertas, para que a partir daí haja alguma renovação e uma nova atitude perante a vida. Ia pensando como era incrível estar ali, com mais 8 pessoas, a fazer este Caminho. E ainda mais quando encontrávamos outras pessoas com o mesmo propósito, chegar a Santiago.
Saímos de San Roman em direcção a Melide, foram 28 Kms com muito calor e poucas sombras. Se no primeiro dia, a maioria do percurso foi feito em estrada [pouco transitada, mas ainda assim], neste dia andámos por carreiros, muitas subidas e descidas [fiquei a saber que estas últimas são bem mais duras] e atravessamos mais povoações. Cada uma delas tem a sua igreja, em granito, à volta da qual se organiza o cemitério, mas na maioria delas não se vê absolutamente ninguém.
Há pouco tempo atrás não lidava bem com este tipo de ambiente, rural, silencioso. De alguma maneira isso deixou de ser importante. Não é que fosse em oração, ou em meditação, muitas vezes ia a conversar com alguém, mas ia sem dúvida em reflexão e o ambiente era propício.
Parámos para almoçar num sítio engraçado, uma casa antiga recuperada com restaurante e alojamento para peregrinos. Aproveitámos para descansar e tratar dos pés e das pernas. Nesta altura comecei a sentir as primeiras dores a sério. Os músculos das pernas começaram a contrair, tinha caimbras e as duas últimas horas foram um verdadeiro teste à minha resistência. Cheguei ao hotel derreada, e custou-me dormir. As minhas pernas pareciam pesar duas toneladas e pôr-me confortável foi praticamente impossível.
Dia 3 [Melide-Arzúa]
Terceiro dia. Ontem foi duro e até me passou pela cabeça que não iria conseguir continuar a pé, mas os cuidados foram tantos, que acordei como nova. A dinâmica do grupo é engraçada. Há as que vão à frente, algumas vão sempre no meio, outras mais atrás, quase sempre as mesmas. Há uma de nós que todas as manhãs se deixa ficar para para trás e assim vai uma ou duas horas. Depois, aproveitando uma paragem, junta-se a nós, e cada uma de nós também encontra outra companhia para caminhar e conversar, e a dinâmica altera-se, mas tudo acontece com espontaneidade. De repente percebo que vou falando menos e ouvindo mais. É bom ouvir outras histórias e sobre outras vidas.
Hoje vimos mais peregrinos. Além de ser fim-de-semana, em Melide o Caminho Francês coincide com o Primitivo e mais à frente cruza-se com o Caminho do Norte.
A etapa terminava em Arzúa, mas estávamos com ritmo e fizemos mais alguns quilómetros. O senhor do lugar onde ficamos, o Xosé, foi buscar-nos. Ficámos numa casa que parecia ser de turismo rural, simples mas muito bonita. Cheirava bem quando entramos, então decidimos ficar lá a jantar em vez de irmos a mais uma pulperia. Comemos tão bem, mas mais uma vez dormi mal. Vi uma cobra no lago que visitámos antes de jantar e aquela imagem não me saía da cabeça. Além disso a cama era muito mole e não conseguia ficar confortável. Enfim, só queria que a manhã chegasse depressa, queria adormecer e esvaziar a cabeça.
Dia 4 [Arzúa-Labacolla]
Apesar de mais uma noite mal dormida acordei bem disposta e pronta para mais um dia. Já estava definitivamente familiarizada com o ritmo de dormir pouco e caminhar muito. Não era o ideal, mas acabei por me adaptar. Já nem tinha que pensar muito na sequência de cuidados a ter: alguns comprimidos, cremes, pensos nos sítios mais frágeis, meias com direito e esquerdo, botas nem muito apertadas, nem muito folgadas. Chapéu e impermeável à mão, garrafa de água cheia, bateria de telemóvel carregada, algum dinheiro, e o bloco de notas para ir fazendo estes apontamentos que estão a ler agora.
O dia esteve nublado, choveu por vezes, mas o caminho fez-se quase sempre pelo meio da floresta, e sinceramente, foi melhor que estivesse fresco, o calor não ajuda nada.
Encontrámos vários memoriais de homenagem a pessoas que morreram no Caminho, por exemplo, uma senhora morreu a dormir na noite após a chegada a Santiago. Não há velas nem flores, há sapatilhas, bilhetes, pedras escritas, fotografias e objectos simbólicos.
A chegar a Labacolla passamos pelo aeroporto, em cujas redes estavam encaixadas cruzes com pequenos troncos de madeira, em memória das vítimas do acidente de comboio de há dois anos atrás.
E talvez por tudo isto que fui encontrando, pensei na sorte que tenho em estar viva. Pode parecer um cliché, mas desafio qualquer um a não sentir o mesmo perante estes símbolos de luto.
Tenho saudades do Daniel, das meninas, mas de casa chega-me imensa força, deles e dos meus pais. Não me sinto só, muito pelo contrário. E esta foi das maiores conquistas desta viagem, fazer as pazes com algumas partes de mim. E amanhã chegamos a Santiago. Que maravilha.
Dia 5 [Labacolla-Santiago]
Dia 4 de Agosto de 2015, último dia do meu primeiro Caminho. Saímos muito cedo, com apenas 10 Km para fazer, queríamos chegar a tempo da Missa do Peregrino ao meio-dia.
Quando comecei a ver as torres da Catedral fiquei muito emocionada. Conseguimos. Mas não era o sentimento de vitória que me invadia, era sim o de uma grande humildade, alegria e paz.
Sentamo-nos nos bancos de madeira da Catedral que já tantas vezes tinha visitado, mas nunca como peregrina. Conseguia ver tudo aquilo que sentia nos olhos das minhas companheiras de viagem. A Missa foi das mais bonitas a que já assisti, mesmo sem botafumeiro. Talvez para a próxima.
Fomos buscar a Compostela, almoçar, comprar lembranças. E entretanto o Daniel chegou e ficou aquela última noite. Depois de jantar ainda voltamos à Catedral para ouvir o órgão de tubos entretanto recuperado, tocado por uma professora de música de 90 anos. Foi maravilhoso e um belo final para esta experiência.
No dia seguinte, depois de almoçarmos uma última vez em Baiona [quase] todas juntas, despedimo-nos já com saudades. Passaram 7 dias desde que saí de casa para viver uma das maiores aventuras da minha vida. Mas já é tempo de voltar, as saudades das minhas filhas apertam, e o Caminho... está feito.